O Brasil tem sido um caso mundial raro de acúmulo de
erros no combate à doença desde o registro oficial do primeiro caso
confirmado de covid-19, em 26 de fevereiro de 2020. Quase 16 meses depois do
paciente 1 (nas estatísticas oficiais), o país supera a trágica marca de
meio milhão de mortos e quase 18 milhões de infectados confirmados, como
constava no painel mundial da Johns Hopkins University na tarde de 18 de junho
de 2021. O pior é que o cenário, alertam cientistas, é certamente mais sombrio,
e o tamanho da tragédia, maior e mais alarmante.
Estudos estatísticos conduzidos por cientistas brasileiros
indicam que, tanto de óbitos quanto de número de infectados pelo
coronavírus, a subnotificação atinge altos patamares. A falta de clareza sobre
o quadro real é obstáculo para implementação mais racional de políticas
públicas e muitas vezes sustenta a falsa sensação de controle da doença.
Vítimas seriam até 700 mil
O número mais realista de óbitos no Brasil hoje deve estar
na casa de 700 mil, não estando afastada a possibilidade de o país chegar a
1 milhão de mortos até o final do ano, segundo afirmou à médica
infectologista Ana Luiza Bierrenbach, autora de estudo sobre a subnotificação
no país. A pesquisa conduzida por ela, que é conselheira técnica sênior da
Vital Strategies, aponta que o Brasil tem pelo menos 30% mais óbitos e 60% mais
infectados do que os números oficiais. "Na verdade, já chegamos a 500 mil
mortos por volta de meados de abril”, assegura.
Divulgar apenas os casos confirmados, afirma a pesquisadora,
é "muito mais confortável para governos”, no Brasil e no resto do mundo.
"Existe a tendência de passar a reportar os casos confirmados e suspeitos,
os prováveis, porque o dado obviamente é menor.”
Porém, para os infectologistas e epidemiologistas,
acrescenta, precisam enxergar o quadro mais realista. "O que preconizamos
é passar a falar não só dos confirmados, mas incluir em nossas notificações
diárias o número de casos prováveis e suspeitos. Eles precisam se tornar
conhecidos.”
O estudo estatístico, que é dinâmico e atualizado
diariamente, tem como base de dados o Sistema de Informação da Vigilância
Epidemiológica da Gripe (SIVEP-Gripe), do SUS. Esse banco, cujo acesso é
público, registra casos e óbitos de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG).
"Pegamos todos esses casos de SRAS, os que eram
covid-19 e os que não tinham nenhuma etiologia, nenhum agente etiológico
[causador da doença] determinado. Em 2018, 2019, os números eram bem baixinhos.
Acontece um boom obviamente a partir de março de 2020, e
neste boom tem muitos casos e óbitos não confirmados como
covid. Dado que não encontramos a etiologia, a única explicação possível é que
seja covid, ou então no Brasil estamos tendo uma pandemia de outro agente
respiratório que desconhecemos. Só pode ser covid”, atesta a infectologista.
Estimativa de subnotificação é conservadora
A médica Ana Luiza Bierrenbach explica que como o banco de
dados que foi base para o estudo de subnotificação registra apenas casos graves
de síndrome de angústia respiratória ou de pessoas que morreram em ambiente
hospitalar ou fora, ou foram internados, certamente as estatísticas são
conservadoras. Significa dizer que a subnotificação de óbitos por covid-19,
explica, é superior a 30%. "Em muitos casos leves as pessoas nem sequer
procuraram fazer os testes. Essa subnotificação que conseguimos calcular é para
casos graves e óbitos.”
Segundo a pesquisadora, a subnotificação certamente era
maior em 2020, no início da pandemia, quando não havia testes e muitos
assintomáticos nem sequer suspeitavam estar com doença. "Mais
recentemente a proporção de subnotificação está diminuindo, o que é um mérito
de estarmos fazendo mais diagnósticos. E mais diagnósticos oportunos. O que
acontece é que pela progressão natural da doença, o vírus tem uma fase de se
replicar na nasofaringe e, portanto, com um exame simples, o Swab, a gente consegue
detectar. Mas depois o vírus vai para os tecidos, e a detecção do agente viral
fica mais difícil”, diz, ressaltando que exame PCR, por exemplo, registra os
resultados positivos se feito entre o quinto e oitavo dia da doença.
"Sempre contar casos e óbitos é importante para
desenvolver e planejar políticas de saúde. Se a gente não sabe o número de
casos graves, não podemos alocar leitos hospitalares, [definir] quantos são
necessários dependendo da fase da doença, quantos leitos de UTI precisamos, [qual
a] quantidade de oxigênio que precisaremos para não passar como crise de
Manaus. Remédios, recursos humanos e hospitalares são calculados a partir de
números”, enfatiza Ana Luiza Bierrenbach.
A divulgação realista e "limpa” dos números acrescenta
ela, é crucial também para sensibilizar e alertar a população. "Estamos
realmente diante de uma crise muito grave. Ainda precisa ficar em casa. Morrem
de 2.500 a 3.000 pessoas por dia no Brasil, e já fazem bons meses que temos
mantido esse números.” O Chile, cita a pesquisadora, serve de
alerta para o Brasil de que a vacinação, se alta, pode não aplacar a
tragédia.
Autora: Malu Delgado
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